Sign up with your email address to be the first to know about new products, VIP offers, blog features & more.

Crônica de um tempo triste…

"Meu coração tem mania de amor" (Paulinho da Viola)

01. Já escrevi aqui, neste espaço, sobre a perplexidade do tempo em que se vive. Vez ou outra, não resisto e retomo essa temática. Ainda no sábado à noite, assisti encantado à pré-estréia do documentário sobre a vida do cantor e compositor Paulinho de Viola, intitulado "Meu Tempo É Hoje" e me surpreendi, mais uma vez, com o correr do tempo, esse enigmático senhor de todos os destinos. As cenas do filme, que deve entrar em circuito comercial em junho, acoplam imagens dos mais antigos dos anos e de hoje, os sons eternos de Pixinguinha e outros tantos iluminados senhores da MPB aos acordes de Rafael, filho de Paulinho. Ele toca violão à moda antiga, do jeito do avô Paulo César Faria. Óbvio que Paulinho repassa as grandes canções de sua carreira que dão o tom nostálgico de todo o documentário. Fazem mais: nos deixam indignados com o tanto que nossa juventude está perdendo em termos de identidade cultural ao se afastar de valores genuinamente brasileiros, como os que caracterizam a obra de Paulinho e de outros tantos artistas nacionais, em nome de bobagens idiotizantes que despeja sobre nós a chamada indústria do consumo.

02. Lembro que ainda no início dos anos 70, quando Paulinho se consagrou com o samba "Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida", vivíamos o redescobrimento do período ditatorial. Mesmo assim éramos um povo com maior personalidade e também com maior fervor em se dizer brasileiro. Acreditávamos no País, mesmo sob o tacão de um regime autoritário. Lá pela virada dos anos 80, quando os novos sonhos de toda a gente puseram abaixo o Muro de Berlim, nós, sob os trópicos, acalentávamos a esperança da consolidação democrática. Inclusive ameaçávamos, neste sentido, com a distensão "lenta e gradual" engendrada pelo general Golbery do Couto e Silva. Curioso como alguns simples acordes de um velho samba levam-me a essas reflexões. Talvez porque naqueles tempos, mesmo sem saber, repetíamos o gesto do velho marinheiro que, durante o nevoeiro, leva o barco devagar. Sonhávamos.

03. O fim da muralha que dividia a Alemanha, acreditava eu, representava o fim de todo e qualquer preconceito, de toda e qualquer discriminação; o horizonte aberto para a almejada paz universal. Aqui, em terra pátria, o óbvio era que com a democracia bendita também viria, automática e espontaneamente, a justiça social, a igualdade, o fim de todos os males que afligiam os brasileiros. Era por isso que saíamos, ruas e praças afora, caminhando e cantando e seguindo a canção que nos unia e nos fazia melhor.

04. Parecia tão simples, repito. Havia um nítido divisor de águas. Havia o bem e o mal. Quem não era por nós era contra nós. Simples e prático. O fim do muro e do comunismo, que dava sinais de exaustão por toda a Europa, não redimia os governos ocidentais de suas mazelas e fragilidades. Mas, projetava uma nova ordem mundial, baseada na valorização do homem como cidadâo. No Brasil, a ditadura era símbolo de todas aflições sociais – e também, aqui, havia claras evidências que não resistiria por muito tempo. Portanto, fazia-se a luz…

05. Era, na verdade, questão de não perder a oportunidade. E, olha, para ser franco, era mais difícil escolher entre um All Star cano longo ou cano curto do que propriamente imaginar que algo poderia dar errado. Pôxa, essa geração batalhou tanto desde 1968, o ano que não devia terminar. Enfrentou as diversas formas de repressão, fez a Revolução dos Costumes, andou por sonhos e devaneios, Hair e Woodstock, virou o mundo pelo avesso em nome da paz e do amor. Era mais do que hora. Tanto lá como cá seríamos felizes, enfim. Um ousado jingle celebrou vitória — e simplificou demais todas as questões. Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada.

06. As cenas que hoje presenciamos no Iraque — e porque não, nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro? — comprovam que, em algum lugar desse passado recente, perdemos o fio da meada da reconstrução social. Trocamos a universalização (que traria embutida a preservação de uma sociedade humanista) pela globalização que privilegia única e exclusivamente o lucro pelo lucro, o poder pelo poder. Trocamos também, e principalmente, a noção de que para se construir esse mundo novo é preciso ser — e não apenas ter. Aliás, as cenas dos saques em Bagdá são emblemâticas dessa realidade. Nem a tragédia da guerra perdida, da pátria dilacerada, foi capaz de neutralizar a ação do possuir como prova inconteste de felicidade.

07. O meu caríssimo leitor deve estar me achando "viajandão". Comecei falando de Paulinho da Viola, tangenciei os tempos do Brasil ditatorial, passei pelo Muro de Berlim, lembrei do velho e confortável All Star e acabei na Guerra do Iraque. Mas, convenhamos, todos somos produtos das circunstâncias e do tempo em que vivemos. E esse, mesmo com o dólar em baixa e o presidente-operário, é um tempo triste. Mesmo assim, ressalto aqui, nunca é demais preservar valores como fraternidade, respeito, ética e todas as formas de amar. Ah!, se puder acrescente um jeito seu de andar pela vida. E sempre que possível ouça um velho samba de Paulinho da Viola.