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Duas senhoras em Perúgia

Quando chegamos, elas já estavam ali.
Em silêncio a remoer o anti-pasto e a memória.

Não nos chamaram à atenção a princípio.
Eram apenas duas senhoras, para lá dos setenta,
a ocupar uma das mesas junto às grandes janelas
do restaurante do Hotel Sangalo, em Perúgia.

Estávamos com fome.
Viajamos o dia todo, sob uma chuva fina
e intermitente. Depois, não satisfeitos,
nos perdemos pela cidade
em busca de hospedagem.

Rodamos pelos arredores da capital
da Umbria várias vezes,
sem rumo e sem prumo.

Quando pensávamos em desistir –
e seguir para Roma ou mesmo voltar
para Assis que é pertinho -, eis que surge
o imponente hotel e nos abriga,
com alguma generosidade a 120 euros
por apartamento triplo. Nada mal…

Topamos – e não nos arrependemos.

II.

Agora, quase nove da noite, queríamos
apenas jantar. Mas, alguém do grupo
ousou reparar nas senhoras ali.
Quietas. Impassíveis. A cumprir
o solene ritual das refeições
italianas – anti-pasto, primeiro prato,
segundo prato, sobremesa e a inevitável
garrafa de vinho sobre a mesa

— Olha, como elas se parecem.

Provavelmente eram irmãs.
A roupa, o silêncio, o penteado,
o silêncio, os gestos, o silêncio,
o olhar no nada, o silêncio –
em tudo, se pareciam.

Não que fossem exatamente iguais.
Mas havia semelhança até nos óculos
que usavam. Definitivamente,
para nós, eram irmãs – e ponto.

III.

Fizemos nossos pedidos,
bem mais modestos que os das senhoras,
e tentamos entabular uma conversa
sobre o roteiro que faríamos
nos dias seguintes.
Mas, outra vez, elas voltaram
a ser o assunto.

— Ué, elas não se falam, não?

— Será que brigaram?

— Vai ver são mudas?

Havia elegância nos gestos contidos
das irmãs, certamente italianas que, juntas,
curtiam o fim-de-semana na cidade
dos arcos etruscos. Elas percorriam,
por conta e risco, os arcos e os grotões
das lembranças. Dos sonhos que ficaram
pelo caminho. Dos tempos idos –
e de efêmera felicidade…

Um mundo que ninguém,
nem o tempo, poderia lhes roubar…
Um universo rigorosamente
pessoal e intransferível…

Tudo em forma de silêncio
e de um olhar mais alongado
para o nada, o vazio, o intangível…

IV.

Sou capaz de jurar, nem perceberam
que eram o assunto da ruidosa
mesa de brasileiros. Brasileiros,
curiosos e bisbilhoteiros, diga-se.

Chamei a atenção do pessoal para
os nossos pratos que chegavam,
saltitantes nas bandejas.

Era bom controlar os gastos. Por isso
simplificamos o pedido a um
tipo de massa para cada viajante.

— É as velhinhas estão ‘de boa’ –
invejou o mais jovem da tropa.

Rimos todos a concordar com a pertinência
da observação. E, louvado seja,
foi a nossa vez de fazer silêncio
e enfrentar a lasanha, o nhoque
e o ravióli que coube a cada um de nós.

V.

Confesso que me intrigou o silêncio
das duas senhoras.
Estavam juntas, e estavam sós.

Quantos de nós não passam a vida assim
mesmo em meio às galeras e aos modismos?

Eu mesmo, não raras vezes, me
vejo distante e desinteressado,
como se fosse um estrangeiro
dentro de mim mesmo.

De outro modo, noto que, cada vez
mais, as pessoas têm dificuldade
de conversar um assunto comum
a quem fala e a quem ouve.

(Normalmente, quem está com
a palavra discorre sobre ele mesmo.
E, quem escuta, faz que está aí,
mas na verdade nada ouve.)

Me parece que, mesmo em bandos
e tribos, andamos cada vez mais
individualistas, com planos e querências
que não ousamos contar nem a nós mesmos.

Andamos distantes de pessoas queridas.
E fazemos de conta que podemos
viver muito bem sem elas.

E aí, gradativamente, nos habituamos
a uma solidão que pode não ser física,
mas existe – é real e perigosa…

Estamos presentes e ausentes,
em tantos lugares e em lugar nenhum…

VI.

Exatamente como as duas senhoras.

Em meio à bagagem, não esqueceram
de trazer também lembranças, o silêncio,
uma certa melancolia, o silêncio e
a própria mania – irreversível e
silenciosa – de ser só…

Até quando saíram do restaurante,
mostraram como se auto-isolaram
uma da outra – e do mundo.

A primeira pegou uma única maçã
na fruteira. A outra retornou minutos depois.
Apanhou a garrafa de vinho e
apenas um cálice – e os levou para o quarto.

VI.

Nem sei porque lembrei hoje dessa história.
É verdade que ontem ouvi um raro desabafo
de um amigo – quase desistindo
de tudos e de todos.

— As pessoas hoje vivem mais de sensações
e menos, bem menos, de sentimentos.
Pode até parecer a mesma coisa,
mas há uma enorme diferença
entre uma coisa e outra.
Viver é uma coisa,
estar vivo é outra…