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Eufrázio ( Partes I, II e III)

Eufrázio não nasceu aqui.
Veio menino de tudo para cá.
Tinha lá seus dez, doze anos.
Chegou mais pai, mãe e
uma penca de irmãos.

Não sabiam o que iriam enfrentar.
Mas, vieram com a cara, a coragem,
uns trapinhos e uma baita fome
de muitos dias.

Na boléia do pau-de-arara
que os trouxe, comiam era pó
e um naco de esperança.

II.

São Paulo já àquela época dava a pala
da cidade louca e envolvente que ainda
hoje é. Estudantes nas ruas.
O Santos de Pelé. Os festivais da Record…

(À primeira impressão que teve
ao ouvir "Domingo no Parque"
num radinho Speaker foi de imensa tristeza,
como se conhecesse João e José.
"Eles eram tão amigos", lamentou).

… Os automóveis, ônibus, o Viaduto do Chá
— enfim, os atribulados anos 60 a mudar
as feições da cidade/locomotiva que
levaria "o Brasil rumo ao seu grande destino".

III.

Tinha consciência de que não era
um pioneiro. Desde meados da década anterior,
tocadas pela seca e pela miséria,
levas e levas de nordestinos migraram
para o que imaginavam ser o sulmaravilha.

Vinham como podiam.

Traziam um balaio de tralhas,
um aboio de saudade no peito e
o áspero sonho de uma vida melhor.

Áspero porque não enternecia,
não encantava…

Debandavam porque a terra estorricada
não lhes dava outra alternativa.

IV.

Eufrázio e os seus foram dar
com os costados (ou o que restou deles)
num cortiço, lá no Cambuci.

O galpão de uma fábrica abandonada
transformara-se no abrigo de uma dezena
de famílias aparentadas ou simplesmente
vindas das mesmas paragens.

Velhos lençóis e grandes pedaços
de lona usada tomavam forma de paredes
e delimitavam os cômodos
que cada grupo ocupava.

Notou os vincos de arrependimento
no rosto do pai. Os irmãos reclamavam
entre si. Falavam em fugir, falavam em voltar,
falavam da besteira que fizeram em vir,
do cinza do céu, da pressa e amargor do
povo nas ruas, indo e vindo,
indo e vindo, sem rumo, sem prumo,
indo e vindo, indo e vindo,
sem nada entender, sem nada conquistar.

V.

Ameaçaram ir ao pai.
Logo entenderam que seria em vão.
Não era coisa de cabra-macho dar para trás.
Decisão tomada era decisão cumprida.

Vieram para São Paulo e
não tinham sequer como voltar.
Teriam de se aguentar.

Aquela espelunca era um bafo quente só.
Fedia a urina e a suor.
As crianças menores choravam…

Em compensação, o cimento
do chão à noite era gelado, duro…
Não havia como dormir.
Não havia como não sonhar.
Não haveria volta…

VI.

— Um dia, a gente pega o caminho
de volta — era o irmão mais velho,
o Belgrado (que mais tarde ficou conhecido
no pedaço como Bececê, nome
de um ponta-esquerda baiano,
de chute forte, que o Palmeiras
acabara de trazer da Bahia).

Era o único que se preocupava
em lhe consolar sempre que,
desolado num canto, enfiava
a cabeça entre os joelhos, procurava
esconder o choro e a humilhação
de estar ali, naquele momento,
num lugar que não era o seu,
num tempo que teimava em não passar.

VII.

De nada valeu o desespero.
De nada valeu a ameaça de rebelião.
O silêncio do pai anunciava a decisão.

Aos poucos, o cimento se
entranhou no corpo e na alma.
Era o jeito de amoldarem à nova vida.

Foram se deixando ficar.

O pai arranjou um emprego numa construção.
Os irmãos cresciam, davam rumo
às suas vidas. Nada era maravilhoso.
Óbvio que não. Nada era fácil.

Mas, tem uma coisa,
comida já não faltava…

Parte 2

VIII.

O menino entendeu logo do que
a cidade é feita. Pelo menos, ouviu dizer.
E se apoderou do recado.
De fé, trabalho e perseverança.

Sempre foi de fazer suas orações,
mesmo sem freqüentar a igreja.
Acreditava em Deus e se considerava
um homem (um menino!) de fé.

Quanto a tal perseverança,
não sabia exatamente o que significava,
mas com o tempo aprenderia.
Não devia ser bicho de sete cabeças, não.

Restou-lhe, de imediato, o trabalho.

IX.

Pois, foi a luta…

Começou por carregar as sacolas e
os carrinhos das madames que voltavam
da feira-livre. Lavou vidros na farmácia
do seo Nestor — o que lhe garantia até
uns trocados para a matiné do cine Riviera
nas tardes de domingo.

Mais crescidinho foi parar
na cozinha de um restaurante lá
no centro da cidade.

Ajudava no que podia.
Cobria as folgas de quem lhe desse uns tostões.
Era prestativo e atencioso com todos.

X.

Caiu nas graças do patrão que
logo o promoveu a assistente de cozinha.
Uma questão de tempo e virou cozinheiro,
depois garçom (com direito a gorjeta) e maitre.

Por essa época achou conveniente
fazer um curso madureza. O novo cargo
exigia uma certa cultura.

Ademais, a essa altura da sua vida,
estava casado e, como convinha às regras
da cidade, tinha um casal de filhos,
um Fusca e um violão, em que por vezes
matava a saudade da terrinha,
entoando um forrózinho lascado.

Mas, o tempo era pouco.
O trabalho, muito. Sete dias por semana,
sem folga. De domingo a domingo.

Ele agradecia por isso.

— Graças a Deus, à Virgem Imaculada,
aos anjos e a todos os santos. Amém!

XI.

Quando o patrão se cansou da lida,
propôs um trato. Coisa de pai pra filho.

— O "Da Bahia" (apelido com que um dos
fregueses lhe presenteou junto a graúdas
gorjetas) quer ‘tocar’ a Casa?

Em troca, queria uma pensão
mensal — e vitalícia. Nenhum absurdo.

Ele (o patrão) não tinha filhos,
nem mulher (só uma velha conhecida
que visitava de vez em quando,
mais para conversar do que
propriamente para outras finalidades).

— É pegar ou largar?
Mas faço gosto que aceite…

XII.

Pegou. Aceitou. Agradeceu.
A Deus, à Virgem Imaculada, aos anjos
e a todos os santos. E ao patrão,
agora sócio, claro…

Era mais do que justo.
O velho sempre gostou do empenho
com que o "Da Bahia" demonstrou
para tocar o restaurante, como
se ele próprio fosse o dono…

De resto, sabiamente, o velho
nunca confiou em parentes.

— Parente é serpente – dizia com
sorriso de quem já viveu o suficiente
para saber o que está dizendo…

Parte 3 – Final

XIII.

Eu que também sou do Cambuci
reencontrei Eufrázio há alguns anos.

Andava pelos Jardins à procura
de empresários que falassem de São Paulo
e do Carnaval paulistano – sempre tão questionado.
Qual era a de quem ficava
por aqui nesses dias? Shopping,
cinema, restaurante ou sambódromo?

XIV.

Muito por acaso, e com alguma fome,
entrei numa dessas cantinas genuinamente
italianas e bato de frente com
aquele respeitável senhor.

A fisionomia e o avantajado porte físico
insinuavam algo próximo entre o Faustão
e o Adílson Maguila. Mas, o jaquetão era
de fazer inveja ao José Sarney.

Depois de alguns segundos de hesitação,
logo nos reconhecemos.

Não fui propriamente um amigo
de Eufrázio. Éramos moleques da mesma
turma. Morávamos na mesma rua,
a Muniz de Souza. Chutávamos a mesma bola
e praticávamos as mesmas traquinagens
pelos quarteirões compreendidos entre a
rua Mazzini e a Piaí (hoje respeitável
Miguel Telles Júnior), a Lavapés e
a Almeida Torres e cercanias.

XV.

Fiz questão de ouvir Eufrázio,
agora, "Eufrázio, da Trattoria"…

Trinta e tantos anos depois, esse
circunspecto senhor se diz feliz.
Realizado não, pois no seu entender
a gente sempre quer um bocadinho mais.
É assim que os sonhos se tornam realidade.

Os meninos estão encaminhados na vida.
Estudam e vão ser doutor.

— Isso é uma outra felicidade –
completa, sem esconder a corujisse
de pai quase avô.

Não há nada na vida que se compare
a sensação de se plantar e colher.
O velho, um dia, lhe dissera isso.
O pai estava desconsolado.
A seca acabou com tudo fora plantado.

XVI.

Em São Paulo não era assim.
Mesmo com seu jeito áspero, a cidade
não fazia dessas ingratidões.

— Quem planta, há de colher. Tem uma
ciência aí, claro. Todo jogo tem lá suas regras.
Mas, fé e determinação são fundamentais.

Por isso, Eufrázio nunca mais
voltou a sua Brodocó e se diz
um paulistano convicto.

Paulistano como seus filhos.
Paulistano como o destino quis que fosse…

XVII.

Abri mão de outros entrevistados.

A história de Eufrázio (que poderia ser João,
José, Pedro, Paulo, Anísio, Whashington…)
é um pouco da crônica diária de cada um de nós,
nascidos ou não na Terra de Piratininga.

Um pouco de Nova York. Outro muito de Biafra.
São Paulo é o que é – e ponto.

Rima com o que se quer: sonho, poesia,
amor e esperança. Mas, se faz de
oportunidades, fé, determinação e…
óbvio, uma dose monumental de trabalho.

Despeço-me de Eufrázio e entendo
que viver em São Paulo é por si
só o ato de escrever uma crônica.

E o Carnaval, Eufrázio, como vai ser?

— Trabalhando, oras, poderia ser diferente?