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Nasci 6.0

Ouviu-se um estalo seco de madeira
quando quebra. Logo em seguida, veio
o grito de espanto.

— Aaaaiiiii!!!

Depois, o quase estrondo e
o trepidar do assoalho de
madeira da velha Redação.

Corremos todos para o canto
da sala, onde o Nasci havia soçobrado
em meio ao que restou da cadeira
— em que tinha por hábito se balançar,
apoiando o recosto na parede –, laudas
e o indefectível cachimbo, de fumo
achocolatado que espalhava um aroma
característico em todo o prédio.

— O que foi isso, Nasci?

— A cadeira quebrou, não estão vendo?

O mais experiente dos nossos estava
ali, estatelado no chão, como qualquer
um dos mortais. A expressão era
de surpresa mútua. A nossa e a dele.

Contivemos o riso, inevitável
nessas horas. E alguém lembrou
de fazer a pergunta politicamente
correta para a ocasião.

— Você se machucou?
Está tudo bem?

— Beleza, rapazes.
Tranqüilo. Foi só o susto.

Enquanto falava, Nasci se levantou
e retomou a pose de protagonista
de tantas histórias, de tantas jornadas.

Não resisti e fiz a pergunta
que não queria calar.

— Ué, Nasci, se não foi nada,
por que você deu aquele berro?

— Eu gritei antes quando
percebi que a cadeira iria quebrar…

— Tá, mas e daí?

— E daí? Oras… Quando você
grita antes nada acontece…

— Como assim? Nada acontece…
Pirou ou foi o tombo?

— Nada acontece, seu ‘mané’,
porque você grita para acordar
o anjo da guarda, entendeu?

Desistimos de provocá-lo. Voltamos
para os nossos lugares e afazeres.
Com certeza, prestes a completar
60 anos, o Nasci era o mais criança
e divertido de todos nós.

II.

Em outra ocasião, chegamos
com uma baita fome ao restaurante
que, para nosso azar, estava lotado.
Sem chance de vagar uma mesa
na próxima meia-hora.

–Vamos embora – disse o Alfredinho,
louco para abater um boi ou uma boiada
no rodízio ali no Sacomã.

— Nada disso – ponderou o Nasci já
se dirigindo à dupla de cantores
que embalava a distinta platéia,
com suaves canções de amor.

Bastou o Nasci cochichar algo
ao ouvido de um deles e enfiar uma
nota graúda no bojo do violão
do outro e ambos desceram
do palco improvisado.

Antes, porém, anunciaram que
iriam interpretar um clássico da música
sertaneja, “Cabocla Tereza”, a pedido
de um amigo que hoje reencontraram
e com quem trabalharam juntos nos
tempos da rádio-novela da rádio São Paulo.

Era do Nasci que estavam
falando, óbvio… E falando e falando…
E não paravam mais de falar.

Quando encerraram a discurseira
emocionada, alguns clientes já se
mostravam insatisfeitos. Aliás, foram
esses os primeiros a sair, quando a dupla
passou de mesa em mesa a recitar
os vinte e tantos versos da toada,
que é um melodrama sem fim…

E foi assim que caímos todos
na gargalhada e logo estávamos
confortavelmente instalados
para o rango daquela noite.

Espertíssimo, o Nasci fez uma
coleta entre nós. Arrecadou vintão
e tascou no bolso do homem do violão.
Com a recomendação imprescindível,
que muito nos alegrou…

— Agora é hora do intervalo.
vão tomar um chopinho, depois
vocês voltam com o repertório
normal… Mas, esperem
a gente terminar, ok? Já ouvimos
‘Cabocla Tereza’ para o resto
das nossas vidas…

III.

Eram inevitáveis na Redação
as discussões acaloradas entre
o Nasci – que trabalhou na TV Record
na época áurea da emissora –
e o Ismael Fernandes, colunista de TV,
especialista em telenovela.

Qualquer programete – e pimba!
Lá estava o Nasci a provocar o Isma.

Desconfiávamos que era
só para diversão dele e nossa.
Mas, não raras vezes, alguns de
nós entravam na pendenga. Ora
em defesa do Ismael, ora solidários
com os argumentos do Nasci,
sempre mais divertidos.

Basicamente, o Nasci defendia
o padrão Globo e o Isma comemorava
qualquer avanço das outras
emissoras no Ibope.

Ele não era xiita. Mas, reivindicava
mais espaços para autores e atores
que conhecia dos teatros paulistanos.

Já o Nasci era implacável. Dizia:

— São todos atores de comerciais
de geladeira. Tão versátil quanto um
quebra-nozes, dizia repetindo o jargão
do colunista Telmo Martino, do JT.

Uma manhã de sexta-feira, para
espanto e indignação do Ismael,
a coluna do Nasci saiu com o título:

TELMO, O HOMEM QUE MAIS
ENTENDE DE TV EM S. PAULO

Olhos turvos de raiva. Ismael,
de pronto, foi cobrar satisfações do ex-amigo,
mas ainda colega de trabalho.

— Campanha contra na própria redação?
Qual é, sr. Nascimento? Desta vez, o senhor
foi longe demais…

Com expressão de desentendido,
Nasci apenas disse para alguém ler
o que havia escrito.

–Afinal, do que você está se queixando?

Ismael mostrou o jornal e a nota,
alardeada por uma seta feita com
grosso lápis vermelho.

Toda a redação parou para
ver o embate e tomar partido, lógico.

Peguei o jornal e li, em voz alta,
o título e o corpo da matéria,
que dizia o seguinte:

TELMO, O HOMEM QUE MAIS
ENTENDE DE TV EM S.PAULO

“O sr. Telmo de Oliveira é o homem
que mais entende de TVs em São Paulo.
Sua oficina de consertos de aparelhos
danificados, situada a rua tal número tal,
nunca devolveu um equipamento sem
o justo reparo. E o sr. Telmo não escolhe
marcas etc etc etc…”

Todos riram, inclusive o Ismael
que desistiu de levar o Nasci a sério.

Nasci era uma criança, aos 6.0
de alma lavada enxaguada
nos becos e bocas da vida…

[Texto publicado no livro "Meus Caros Amigos – Crônicas sobre jornalistas, boêmios e paixões"]