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Parem as máquinas!

Já lhes falei do Almeidinha.

Jornalista das antigas, de certa forma incerta foi um dos caras que me deu régua e compasso para acertar o passo incerto na vida de enfileirar letrinhas, uma depois da outra.

Se quiserem saber mais do amigo, basta acessar o ícone Parangolés, em 10 de julho deste ano. Se quiserem dar-me a honra de voltar aqui depois, fico muito agradecido. Agradecido mesmo, pois gostaria de lhes contar como o senso jornalístico do Almeidinha evitou uma guerra.

Ou quase isso…

II.

Tarde da noite.

A redação vazia.

O Almeidinha, mais uma vez ali, sozinho.

De plantão.

A postos.

Se houvesse qualquer imprevisto antes ou durante a impressão, ele seria acionado e prontamente deveria resolver a questão.

Nos anos 50, o jornalismo não contava com tantos recursos tecnológicos. O jornal era feito no “chumbão”, à quente, como se dizia à época. Toda e qualquer mudança era uma trabalheira considerável.

Linotipos, clichês, versalete, tabelas de conversão, picas (lia-se paicas), cíceros, caixa alta, caixa baixa, primeira prova, segunda prova, emenda, rama – a garotada de hoje não tem sequer idéia do tamanho da encrenca, o que significam essas inocentes palavras.

Mas, era para isso que o Almeidinha estava ali.

III.

A função tinha vantagens e desvantagens.

A maior vantagem era que, na maioria das vezes, não aconteciam erros. Almeidinha, cioso da responsabilidade, conferia página por página, linha por linha, clichê por clichê e dava um ok para a impressão. No dia seguinte, o Almeidinha chegava com cara de quem mal dormiu. Os colegas soltavam o deboche:

— Dinheiro mole ontem, hein.

IV.

Outra vantagem era o “alvará de soltura” sem prazo de validade que podia apresentar à patroa, a Sra. Almeidinha. Ou dona Polícia, como preferirem.

Dali, o homem poderia esticar para um ‘inferninho’ qualquer – de preferência, os da Domingo de Moraes. Chegaria a hora que bem entendesse em casa e, óbvio, a culpa era do fechamento do Diário da Noite.

Um único senão: os perfumes baratos que usavam as "finas" moças desses lugares nem tão finos assim.

V.

As desvantagens eram muitas.

Não lhe permitia vida pessoal. Trocava a noite pelo dia. Dormia aos sobressaltos, acordava injuriado, pois não podia haver erro no jornal que todos lhe acusavam:

— Que vacilo, Almeidinha! Estava dormindo quando revisou a página? Papelão!

Pior eram as noites em que acontecia um fato importante no limiar da madrugada. Todo o jornal era repaginado com a supervisão atenta do Almeidinha e o ruído dos teletipos que traziam as últimas do Brasil e do mundo.

VI.

Foi ao lado de uma dessas trapitongas que, por volta das duas da manhã, alguém encontrou a notícia do ano: a Espanha acabara de declarar guerra ao Brasil.

Explico: a Espanha nunca declarou guerra ao Brasil.

Tudo não passou de uma brincadeira que algum gaiato fez para cima de um zeloso linotipista.

VII.

Foi assim:

Alguém forjou um telex com a notícia falsa e deixou por ali, de bobeira, à disposição do primeiro vacilão que passasse. E passou. E pegou. E leu…

Explicava tim-tim por tim-tim porque a diplomacia dos dois países não chegou a um bom termo em prol da paz. Parece que os espanhóis acharam menosprezo o comportamento de nossa torcida durante a recente Copa do Mundo de 1950. O escrete tascou um retumbante 5 a 0 e o Maracanã inteiro cantou os versos de uma marchinha de carnaval:

“Eu fui às touradas em Madri
E quase não volto mais aqui
Pra ver Peri beijar Ceci
Eu conheci uma espanhola
natural da Catalunha
Queria que eu tocasse castanhola
e pegasse touro à unha
Caramba caracoles
sou do samba não me amoles
Pro Brasil eu vou fugir
Isto é conversa mole
para boi dormir …
Pararatchimbumbumbum”

O telex dizia mais.

“Os espanhóis acharam uma torpe ofensa.”

Inclusive ameaçavam “prender e fuzilar os autores da obra, Braguinha e Alberto Ribeiro.”

VIII.

Antes de continuar, uma explicação se faz necessária.

Os linotipistas eram profissionais orgulhosos de seus conhecimentos, tanto da língua portuguesa como de tudo o que estava acontecendo no mundo. E eles eram bons nisso. Primeiro, porque uma vírgula que errassem e teriam de refazer a página desde o começo. Segundo, porque gostavam de se mostrar mais jornalista do que os próprios jornalistas.

Justiça seja feita.

Era comum consertarem erros de gramática que deixavam passar os craques das notícias.

Por isso, ao encontrar o telex com timbre de uma das agências internacionais, o fulano concluiu que algum repórter mais desatento nem se dera conta da importância da informação. Resolveu, por conta própria, refazer a primeira página e só depois notificar ao Almeidinha que estava ali a olhar estrelas.

IX.

Ao receber a páginas, o jornalista tonteou.

Quando leu a declaração de guerra em letras garrafais, as estrelas que imaginara ver transformaram-se em enorme cometa com cauda de fogo a cortar os céus rumo à Terra, mais precisamente ao prédio dos Diários Associados, na rua Sete de Abril.

— Enlouqueceu, Mané?

— De onde saiu isso?

— Quer que eu perca meu emprego?

— Você bebeu?

— Quer me *****, otário?

Enquanto engatilhava uma pergunta atrás da outra, imaginou o furdúncio que seria se não agisse rapidamente e consertasse aquela bobagem infinita.

Então, no melhor estilo dos profissionais das antigas, desfez o nó da gravata, desabotoou o colarinho e gritou:

— Parem as máquinas!

X.

E as máquinas pararam…

E tudo foi refeito, recuperando-se a manchete anterior.

S. PAULO TERÁ CHUVA DE PRATA
NAS FESTAS DO IV° CENTENÁRIO

XI.

Não se espantem.

A tal chuva de prata provocaria inundação alguma. Seriam algumas milhares de bandeirinhas lâminadas que um teco-teco jogaria sobre a cidade na noite de 25 de janeiro de 1954.

Ah!

Quanto ao linotipista maluco-beleza, ele não perdeu o emprego porque era camarada de Almeidinha. Além do que, os dois amanheceram trêbados a caminhar abraçados pelas calçadas da Domingos de Moraes. Cantavam Touradas de Madri e davam “vivas” à paz na terra aos homens de boa vontade. “Pararatchimbumbumbum”.

[Texto publicado no livro "Meus Caros Amigos – Crônicas sobre jornalistas, boêmios e paixões"]