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Uma história paulistana

(* Fernando Cassaro)

Um dia de semana qualquer, por volta das 21h30. Voltava para Guaianases. Saía da Vila Matilde e, para variar um pouquinho, tinha de pegar um ônibus lotado. O 3686-10, Jardim São Paulo, vindo do Parque D. Pedro, costuma ficar cheio em qualquer dia da semana e em qualquer horário. Fiquei um tempo em pé. Ao menos tinha uma morena maravilhosa de saia, típica vestimenta de quem foi até alguma igreja e retornava pra casa feliz do bate-papo, em alto e bom som, com Deus. Mas era linda…

Liberou uma vaga em um banco próximo e sento. Sem ter o que fazer e chegando em Artur Alvim, comecei a prestar atenção em um monólogo dois bancos para trás. Uma mulher, nordestina com certeza, poucos dentes na boca, mais precisamente na arcada inferior, reclamava muito. Dizia que tinha de levar o garoto, sentado ao lado dela, para Guaianases. Trabalhava de dia e de noite e ainda teria de voltar para casa. Só iria chegar por volta da meia-noite. Sem parar de reclamar, começou a comentar para quem quisesse ouvir e não.
Ela acabara de encontrar um garoto, de apenas oito anos, na porta de casa, em Itapecerica da Serra, há mais de 50 Km de distância. Deu comida, conversaram e ele disse que a família morava em Guaianases.

Como foi parar tão longe?

Simples de explicar, complicado de entender. Aprontou uma arte e a mãe disse que ia matá-lo. Ele levou muito a sério a história e saiu para rua de terra, há poucos metros do Hospital Geral do bairro. Passaram dois garotos de rua, um de 11 e outro de 17 anos, e o baixinho resolveu desabafar. Eles o incentivaram a fugir de casa e o menininho levou a sério. Pegou um ônibus e foi embora. Andou pelo centro da cidade durante cerca de 20 dias e sem a companhia dos outros dois. Dormiu em praças, ruas e até na frente do Extra da avenida Brigadeiro Luiz Antônio. Prova das andanças foram tiradas de uma sacola de plástico amarelo na mão da boa samaritana (não perguntei o nome dela, desculpem): uma bermuda e uma malha surradas e imundas.

E o garoto nem aí. Só queria voltar a estudar para rever os coleguinhas. A essa altura, a comoção já tomava conta do ônibus e a mulher, que antes incomodava com o falatório, tinha virado estrela. Todos começaram a reconhecer aquele rosto sonolento, inclusive este escriba (homenagem ao grande guru). Aquela face estava afixada em todos os ônibus, vans, padarias, pizzarias e, claro, no hospital com um apelo da família por qualquer informação sobre o paradeiro da criança.

De tanto olharem para aquele garotinho franzino, ele começou a abrir os olhinhos e olhar para todos os lados. Deve ter se sentido um alienígena. Uma vizinha, depois de prestar mais atenção, reconheceu o garoto e disse que a mãe dele chorava todos os dias.

Como a mãe ia se sentir ao encontrar o pequeno? Armaram uma operação de guerra. Era melhor chamar o pai e avisá-lo sobre o presente desse domingo marcado por uma data trágica. A mãe poderia não agüentar… Desci junto com eles no ponto. É perto da minha casa (todas as desgraças acontecem aqui ultimamente) e me disseram que faz bem andar um pouco. Observei o pai aparecendo e, não sei o porquê, não quis ver a mãe do mocinho. Com certeza, ela não ia matá-lo.

O que motivou aquela mulher a dar comida a um garoto, ouvir a história dele e andar mais de 50 Km dentro de, no mínimo, dois ônibus? Com certeza, ela já deve ter passado muita necessidade no lugar de onde ela veio e teria todos os motivos para dizer um grande "foda-se". Ela só quis ajudar o menino. Só. Esperando nada em troca. Acho que essa história, acompanhada anonimamente em tempo real e não recuperada, poderia sair em algum jornal. E o que fiz depois disso? Nada. Sentei minha bunda aqui na cadeira e escrevi para vocês, meus únicos leitores. Azar o de vocês. Não quis ligar para o jornal e, pela enésima vez, ouvir que eles não pagam frila aqui em São Paulo ou, então, ouvir o editor dizer que só pega matéria se puder pagar e que dá preferência aos três estagiários da editoria. Apenas escrevi. Quis contar essa história para vocês. Faltam detalhes que não perguntei, mas isso não é um jornal e acho que está bom. Grande abraço a todos.