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Marcão e Zé Jofre

Eis aqui um breve relato sobre a história de vida de dois jornalistas, José Jofre Soares e Antônio de Oliveira Marques, com os quais tive o privilégio de conviver em meados dos anos 70 na redação de Gazeta do Ipiranga. Eles foram os precursores da implantação dos jornais de bairro na Capital. Foram principalmente dois sonhadores que sempre estiveram em busca da utopia de uma sociedade mais justa e igualitária.

O texto homenagem é mais do que merecido, creio eu. Ambos eram autodidatas e trabalharam nas redações dos jornais diários paulistanos. Nos anos 40/50 passaram a militar no Partido Comunista, que implementou na formação de ambos um forte vínculo com as teorias socialistas-marxistas. No final da década de 50, depois de algumas prisões, não conseguiram mais empregos nas redações convencionais, de tão identificados que estavam com a causa comunista.

Fundaram então alguns jornais de bairro na periferia de São Paulo e um em São Bernardo – a Gazeta de São Bernardo. A proposta desses dois quixotes era organizar a sociedade e dar voz e vez, como gostava de dizer o Zé Jofre, aos moradores dos núcleos urbanos que começavam a pipocar nos arredores de São Paulo. Era o início do que, posteriormente, veio a se chamar de periferia. Uma proposta que reforçou-se ainda mais após o Golpe Militar de 64 que arrasou a sociedade, dizimou partidos políticos, sindicatos, associações de estudantes e todo e qualquer núcleo que pudesse dar vazão aos reclamos sociais.

Marcão queria que as pessoas voltassem a se juntar e a entender que tinham um ideal comum. Que a luta era de todos; primeiramente por melhor qualidade de vida. Achava que o processo de urbanização favorecia a união de todos em torno de uma causa, visto que o perfil do habitante dessas regiões era muito próximo — trabalhador de baixa renda em busca do tão acalentado sonho da casa própria – e que, por faltar quase tudo nesses locais, havia muito para se cobrar do poder público.

Aqui, cabe fazer abrir parênteses: a convivência de ambos não era simples. O cearense Zé Jofre, que originariamente era gráfico, era mais radical, adepto de caudalosos artigos doutrinadores, repletos de citações. Artigos sistematicamente vetados por Marquês sob a implacável alegação: “Uma lauda todo mundo lê. Duas, só os mais interessados. Três, nem a mãe da gente agüenta…Depois, Zé, é uma bandeira só”.

Jofre era useiro e vezeiro em citações. Defendia-se: “O povo só será livre quando se autoconhecer. Mas, para tanto, vai precisar fazer uma auto-avaliação e reconhecer as verdadeiras condições em que vive”.

Outra citação freqüente de Jofre, vinda dos escritos de Marx: “O primeiro dever da imprensa era minar todas as bases do poder político existentes”.

Marcão concordava com Jofre em tese, mas discordava na prática. Defendia uma organização social sem que houvesse qualquer tipo de tutela ou manipulação, fosse ela qual fosse. Argumentava, com o mesmo autor: “A condição econômica do indivíduo é que determina sua ação social”.

Por ter sido redator-chefe dos jornais do Partidão – Notícias de Hoje, São Paulo Hoje, entre outros – exercia uma ascendência natural. Também obviamente por seus amplos conhecimentos da linguagem jornalística. Queria textos curtos, objetivos, na forma direta, sem qualquer adjetivação. O fundamental é que trouxesse a denuncia de uma questão real: um braço de rua, a falta de calçamento, iluminação pública; de creches, escolas. Enfim, algo que colocasse o Poder Público em xeque – e que, amanhã ou depois, quando conquistado – revelasse concretamente a vitória de toda a comunidade e assim, entendia,
o povão vai pegar gosto de lutar pelo que acha que é correto.

Cheguei a Gazeta do Ipiranga em meados de 74/75. Marcão e Jofre estavam fora da Redação – o nome de ambos sequer constava no expediente por questões de segurança. Marcão (a quem eu insistia em chamar de Seo Marques, e inapelavelmente ouvia a sua heresia maior: “Senhor está no céu, cara”.) era uma espécie de consultor geral e o Jofre, que nunca quis ser patrão (“Patrão bom nasce morto”), tinha um salário para fiscalizar a distribuição do jornal. A ordem para os três repórteres era simples: sair às ruas e ouvir as reclamações da população. Os grandes jornais passavam ao largo desses problemas tão corriqueiros na vida dos periféricos e o centralismo do poder ditatorial preservava-se igualmente distante dessas questões de água, luz, esgoto, escola etc.

Quando era uma só pessoa que se queixava, a orientação era que fizesse a reivindicação por meio de uma carta. Caso contrário, se ela achasse mais conveniente e se o problema incomodasse a mais pessoas, então que as reunisse para que se fizesse a reportagem.

Foi com base nessa, digamos, espontaneidade que a região do Ipiranga nos anos 70 reunia nada menos do que 32 sociedades amigos de bairro, além de outros tantos clubes de serviços, centros desportivos, clubes de lojistas, entre outras associações.

Marcão morreu em 78, quando Gazeta do Ipiranga (onde ele e seus colaboradores concentraram todas suas forças) circulava com 20/24 páginas e tinha uma tiragem semanal de 43 mil exemplares. Um mês antes de seu falecimento, o pessoal da redação foi visitá-lo em sua casa. Ele se confessou um tanto preocupado com os rumos do jornal e com o futuro das sabs. “O jornal transformou-se num grande vendedor de anúncios. Tem um classificado forte que tomam quase 60 por cento de suas páginas. Os interesses comerciais quase sempre vão bater de frente com os editoriais – e nem dá para ser diferente. Hoje, mais de 30 famílias sobrevivem da Gazetinha. Como não abrir espaço para o anunciante?”.

Para as sociedades amigos de bairro, um alerta: “Os líderes comunitários não podem deixar que os políticos profissionais invadam as instituições. Nem devem aceitar empregos no gabinete de quem quer que seja. Aí, passa a valer o interesse pessoal sobre o coletivo”.

Antes de nos despedir, fez questão de nos mostrar uma folha amarelecida pelo tempo. Tinha a forma de uma primeira página de jornal. Com olhar de criança, contou a mais encantadora peraltice de sua vida. Quando Getúlio Vargas morreu, houve grandes passeatas. Ele e os seus, então, montaram aquela edição-extra de uma única página, subiram nos prédios e espalharam por toda a cidade. A manchete também era única:

— Que o povo saia às ruas e tome para si os rumos da Nação.

Zé Jofre só ficou mais alguns meses no jornal após a morte do amigo. Tempo suficiente para preparar a papelada da aposentadoria. Mudou-se para Bonito, no pantanal mato-grossense, onde um sobrinho lhe daria casa e comida. Zé sempre foi um homem só. Considerava que a luta não permitia certos luxos. Casar, por exemplo. Antes de partir, porém, avisou o pessoal para dar sumiço nuns “trens” que não tinha como levar para a nova casa.

Chegando lá não ninguém acreditou no que viu: em meio a uma dezena de litros vazios do vinho português Gatãozinho, lá estava um punhado de rifles e munição à espera da tão sonhada revolução que nunca veio…

NR:. o artigo foi publicado, em uma versão mais sintética, digamos, no lançamento do jornal São Caetano Agora, em 25 de julho de 2003. Foi orginariamente escrito para minha participação no Celacom, na Universidade Metodista quase um ano antes. Ainda serviu de inspiração para um artigo, de fazer inveja aos que Zé Jofre escrevia de tão extenso, intitulado “Jornal de Bairro: um sonho que ainda não acabou”, publicado pela revista Estudos de Jornalismo e Relações Públicas, da Universidade Metodista, em dezembro de 2003.

[O texto também foi publicado no livro “Meus Caros Amigos – Crônicas sobre jornalistas, boêmios e paixões”]

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