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Título: Número um
Autor: Rodolfo C. Martino - publicado em 19/06/2007
 

Nevou.

E Paris se fez mais romântica, a enfeitar-se de branco, telhados e ruas, logo na primeira manhã daquele ano.

Estávamos a escolher os próximos roteiros de viagem na Gare de Saint Lazare e vimos quando o senhor chegou a cantar, como se estivesse nada mais houvesse no mundo. Ele, a canção e as lembranças. Deu um não-sei-o-quê de saudade ali na hora que, mesmo agora, estou a me perguntar: se era coisa minha, do cantante ou da dolência natural da música romântica francesa?

Estou sem resposta ainda hoje.

II.

Ao seu lado, seguia um guri falante. Dezesseis ou dezessete anos, se tanto. Devia estar a contar os feitos da noite de São Silvestre, como por lá é conhecido o 31 de dezembro. O homem não lhe ouvia.

Tinha um chapéu enterrado na cabeça e o sobretudo que atravessara gerações. Poderia ser pai, avô, tio ou parente do garoto, mas não lhe dava atenção. Apenas andava ao seu lado, a balbuciar versos inteligíveis. O olhar vadio perambulava pelos trilhos dos trens que interligam a França a outros cantos da Europa.

A um dado momento, o rapazola se tocou da indiferença. Encheu-se de brios e pulou na frente do senhor. Queria aprovação para essa ou aquela proeza. Reforçava com gestos e sorrisos.

O expediente de pouco adiantou.

Ele parou de cantarolar. Mas, não de sonhar.

-- Proeza. Que proeza, menino. Proeza será o dia em que você aqui deixar uma mulher chorando de amor e partir em um desses trens, também com o coração apertado, para enfrentar novos desafios. Aí, sim, poderá dizer que a vida valeu para alguma coisa. Aí, sim, vai se sentir um homem de verdade.

Voltou a cantar e a olhar os trilhos.

III.

Desconfio que o homem falava por experiência própria. Mas, também poderia estar lembrando de algum filme como sugeria a tal cena. Sei apenas que o cenário era propício para encontros e despedidas, os dois lados da mesma viagem. Ambos inesquecíveis.

Percebi uma certa perplexidade na expressão do garoto, tipo: não foi isso que eu perguntei. Porém, no ato, concordei com o senhor. E, sei lá porque motivo, me vi na platéia do Olympia em 1993. O cantor Nélson Gonçalves fazia um show que reverenciava 50 anos de boemia – Nélson morreu cinco anos depois, em abril de 1998, aos 79 anos.

IV.

A casa de espetáculo estava lotada e Nélson a enfileirar um sucesso atrás do outro – “A Minha Renúncia”, “Nem as Paredes Confesso”, “Negue”, “Fica Comigo Esta Noite” e a indefectível “Boemia”, entre outras. Lá pelas tantas, os acordes introduziram um samba-canção de Benedito Lacerda, chamado “Número Um”. Originalmente gravados por Orlando Silva, os versos contam a história de um homem que vê a mulher amada ir embora em busca de tantas e tamanhas "proezas", se é que me entendem?

Termina assim:

“Tudo porém foi inútil.
Eras no fundo uma fútil.
E foste de mão em mão.

Satisfaz tua vaidade.
Muda de dono à vontade.
Isto em mulher é comum.

Não guardo frios rancores.
Porque entre os teus mil amores.
E serei sempre o número um.”

Nélson não segurou as lágrimas.

V.

A platéia percebeu e se emocionou. Aplaudiu com mais intensidade. Quando as palmas e assovios diminuíram, o cantor tentou agradecer. No entanto, lá do fundo do salão, veio a voz de um gaiato:

-- Chorando, hein, Nélsão...

E o cantor não se perdeu. Apesar da gaguejada, habitual quando Nélson falava, deu uma lição de vida para todos nós.

-- Se você ama-masse como eu ama-mei, te-tenho certe-za que tam-bém cho-cho-choraria...

Mais e mais aplausos. Não havia neve, óbvio. Mas sobrou romantismo.

 
 
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Autor: Amanda Valeri Data: 20/06/2007
Paris. Paris. Literalmente meu sonho de consumo. Paris transpira todos os sentimentos mais puros, sinceros e transparentes. É a união de amor, romantismo, paz, alegria, harmonia (de cores, amores, sentimentos, objetos, paisagens) elegância, sofisticação, beleza própria....tudo muito sutil e encantador. E deve ser ainda mais fascinante com a paz da neve....

Eu não sou “da época”, como muitos dizem, de Nélson Gonçalves....

Outra frase feita que muitos colocam no dicionário da vida e que acho uma bobagem. Com toda a tecnologia, internet, livros e vídeos que temos disponíveis hoje, podemos muito bem “ser da época” de qualquer gênio da música, da arte e/ou da literatura. Meu querido avô, que eu também já mencionei neste espaço, era um grande admirador de Nélson e lembro dele ouvindo sentado na sua poltrona na sala, ao lado do tocador de vinil (será que se chama tocador de vinil?).

Bom, chegando onde quero chegar: amores vão e vem nas nossas vidas....uns são marcantes, outros não....e como uma grande amiga (você conhece ela, a Lú) me disse ontem: “existem momentos e pessoas na vida que nós não podemos deixar que o tempo ou as pessoas levem....não podem permitir isso.....”. E essa frase ficou na minha cabeça..... e a frase da Lú (que estava dentro de um contexto complexo, numa conversa mais complexa ainda....) se tornou mais fresca na minha mente quando li o último verso desta canção – “Porque entre os teus mil amores, eu serei sempre o número um.”

É.....o amor....romantismo....você não precisa estar em Paris - a cidade mais linda do mundo, num final de tarde com aquele pôr-do-sol emocionante em frente a Torre Eiffel ou numa manhã fria, coberta pela leveza da neve - e muito menos num show do Nélson para chorar, se emocionar, lembrar, sentir, gozar deste sentimento..... é claro que ambientes como esses ajudam, né!?

Amor não é simplesmente um sentimento sublime que liga dois seres apaixonados. É um sentimento de revelação, de ampliação do quadro da vida, que mistura coisas diferentes que confundem mais do que esclarecem... nós nos tornamos (sim, o amor pode modificar nosso comportamento, nosso modo de viver) mais sinceros, inocentes e transparentes que podemos chorar na frente de uma multidão, como fez nosso querido Nélson!

Lindo texto!

Beijos,
Amanda Valeri
 
Autor: Rose Prata Data: 20/06/2007
Professor,fique tranquilo ainda leio vc,só não comento mais,seus textos são ótimos.
Bjssssss
 
Autor: doris cristofani Data: 20/06/2007
Como sempre....
Sua sabedoria ao falar de amor,ao fazer revivermos amores,ao mostrar que somos plural em amar...é insuperável....lindo!!!!
Parabéns e obrigada por mais esse momento!!!!!!!!!!!
 
Autor: Roberta Ruiz Data: 19/06/2007
Nossa, que lindo Rodolfo!
Parabéns por esse, e por tantos outros textos!!!!!!
O que seria de nós sem o Amor??????????
Abraços!
 
Autor: Analy Cristofani Data: 19/06/2007
Que coisa mais linda, Rodolfo. Lindo, lindo de verdade.
 
 
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