Falavam coisas do rapaz do 1819. Diziam que tinha um pacto com as tais forças ocultas. Que ouvia vozes. Via pontos luminosos. Tinha presságios. E só dizia a verdade, “doa a quem doer”.
Era, portanto, diferente da maioria dos videntes que gosta de dar uma moral para os incautos consulentes.
1819 era o número de um modesto sobradinho, discretamente fincado num conjunto de casas geminadas em uma rua movimentada de tradicional bairro paulistano.
O rapaz do 1819. Assim ele era conhecido naqueles arredores. Assim fazia fama mais e mais a cada dia, em meados dos anos 80.
Foi numa tarde fria, como a de hoje, que fui encontra-lo para uma entrevista, no dito cujo 1819. Preciso dizer que os feitos do moço chegaram à Redação e adivinhem quem foi incumbido de entrevista-lo? Entrevista-lo numas. O editor queria mesmo que eu o desmascarasse. Mostrasse a balela dos seus conselhos e acabasse com aquela prova cabal de que somos um País atrasado, de gente atrasada e relógios também – inclusive o meu.
Explico.
Cheguei atrasado ao encontro, embora a Redação fosse pertinho dali. Ele estava a minha espera com um sorriso de boas vindas. Tipo franzino, roupas comuns, nenhuma afetação ao falar. O que me desconsertou um tanto. Não era isso que esperava encontrar. Já não se faziam adivinhos como antigamente…
Para ser sincero, não sabia nem por onde começar.
II.
Entramos para o cômodo onde atendia – e outra surpresa: era apenas um escritório, de móveis convencionais, sem nenhum parangolé que lembrasse que ali estava o grande profeta.
Alguns segundos de silêncio, como se estudássemos um ao outro, resolvi começar, e da maneira óbvia.
— O que acontece? Você vê algum espírito, incorpora alguma entidade, tem premonições?
— Apenas fecho os olhos e peço silêncio. Aí, peço que a pessoa fique à vontade para dizer porque veio e sou tomado pela sensação das coisas que preciso dizer. É incontrolável…
— Ah!!!
— Aí, as pessoas por si só vão desenvolvendo o assunto. Colocam os problemas, temores, frustrações, medos, sonhos. E assim conversamos até que a hora se esgote…
— Assim do nada. Não olha o mapa astral. Não joga búzios. Não faz despacho. Nada? Apenas conversa?
— É.
— E as pessoas se dão por felizes? Não percebem que você é…
— … Eu não sou uma fraude. Também não as engano. Converso com elas. Ouço o que elas têm a dizer e falo exatamente o que penso sobre a questão. Algumas se dão por satisfeitas com as respostas. Outras não concordam. Mas, insisto para que falem tim por tim, exatamente o que pensam. Pois só assim vamos esclarecer o que muitas vezes nem mesmo ela quer ver.
III.
— Ai, ai, ai. Cada vez entendo menos…
— Está vendo. Há em você a contradição que existe em todos nós.
— O quê? O quê? O entrevistador aqui sou eu…
— Você não veio me entrevistar para saber mais de mim e das coisas extraordinárias que dizem que eu faço.
— Não?
— Seja sincero. Você veio descobrir ‘o grande golpe’ que estou dando nas pessoas. Tanto que nem sabia por onde começar a conversa.
— Como não sabia? Sabia sim.
— Esperava encontrar alguém de turbante, fantasiado para um baile de carnaval, diante de uma bola de cristal.
— Que é isso, cara?
— Queria desvendar a grande mentira, não é?
— Já falei o entrevistador aqui sou eu.
— Não estou magoado. Sei que isso faz parte da sua profissão. É louvável que o jornalista desconfie de tudo. De governo, de oposição, do alto, do baixo, do rico e do pobre. Porque todos e todos vivemos a era da ‘grande mentira’. Tanto é que, quando alguém se propõe a ouvir única e exclusivamente a verdade de cada um, esse alguém é visto como um ser paranormal, místico, com poderes do além…
IV.
— Você está filosofando…
— Não e sim. Não porque só estou lhe dizendo a verdade. Sim porque há mais conceitos filosóficos e transcendentais nos pequenos atos da vida do que em qualquer compêndio acadêmico.
— Me dê exemplos. Exemplos concretos para clarear minhas idéias.
— Pegue o bate-papo de duas pessoas. Há sempre um jogo de esconder a verdade para salvaguardar interesses. Participe de uma reunião qualquer – seja de trabalho ou para escolher o síndico do prédio ou para definir a tendência da moda da próxima estação. É nítido que o principal nunca é posto na mesa, ressoa nas entrelinhas. Deve ficar subentendido. Assim, em tese, a gente não perde nunca. Pior: se não der certa a nossa estratégia, podemos pular para o outro barco rapidinho, rapidinho…
— Ninguém quer perder, não é assim?
— Você está perguntando ou afirmando?
— Estou refletindo. O editor me instigou a descobrir a mentira de alguém. E encontro alguém que só lida com a verdade. Eis o grande fenômeno paranormal. Assim posso concluir que a verdade também é algo em extinção como os dinossauros, os bondes e os amores sinceros.
— É certo que há grandes mentiras na vida das pessoas. Mas, há verdades que são absolutas.
— Qual? Qual? Agora já duvido de tudo e de todos.
— Não é bem assim…
— Então me diga uma só verdade absoluta…
— Você me deve 100 paus. Acabou o tempo da sua consulta. Eis a verdade, doa a quem doer…
[Texto publicado no livro "Meus Caros Amigos – Crônicas sobre jornalistas, boêmios e paixões"]