Foto: Largo do Cambuci, década de 50/Arquivo Histórico/SMC
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Ato 3
Uma bênção. Na infância, pude conviver com o vô Carlito.
Ele nasceu em fevereiro de1904, em Cascatinha, no Rio de Janeiro.
Dizia-se, porém, um napolitano da gema, em função da origem dos pais que saíram da Itália na primeira leva de imigrantes em 1874.
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O vô tinha nome solene: Carlos Humberto Vitório Avezzani.
Ele próprio dizia que não era um nome, mas sim um título de nobreza.
Quando nasceu, o pai decidiu reverenciar os dois reis da Itália.
Humberto (que deixara o trono) e Vitório Emanuel, o sucessor.
O vô, no entanto, preferia que o chamassem de Carlito, apelido que ganhara aos oito anos, quando começou a trabalhar numa construção.
Ficava para cima e para baixo, fazendo serviços gerais. Carregava tábuas, e ajudava no que podia e, muitas vezes, no que não podia.
Adulto, transformou-se em um chapeleiro de mão cheia, todos diziam.
A fábrica era perto de onde morava, entre as ruas Lavapés e Scuvero.
Por causa de uma hérnia maltratada, o vô tinha dificuldades de locomoção. Andava pouco e devagar. Depois de aposentado, passava o dia à janela vendo o movimento dos bondes e o alegre desfilar das tecelãs que cortavam a Lavapés em diversos horários.
O chapéu na cabeça e o copo de vinho no parapeito eram companhias indispensáveis.
Curioso.
O vô Carlito, que ouvia operetas de Gigli e chorava ao ouvir O Sole Mio, bastava uns goles de vinho para se pôr a cantarolar a brasileiríssima Luar do Sertão.
Os versos de Catulo de Paixão Cearense pareciam mexer com algum misterioso sentimento. Viajava para outra dimensão.
Inesquecível cena.
Epílogo
Se bem me lembro, foi o vô Carlito quem, pela primeira vez, me falou sobre a estupidez de todas as guerras.
Meados dos anos 50. Ainda vivia-se o assombro dos estragos causados pela Segunda Grande Guerra.
Vez ou outra, as conversas entre a italianada, no bar do bairro, giravam em torno do sofrimento do povo italiano sob domínio do nazifascismo, da invasão das tropas alemães e da corajosa resistência de uma gente festeira habituada a sorrir e a cantar.
De uma hora para outra, se viram subjugados pelo inimigo, reféns dos bombardeios e das condições subumanas que o conflito armado impõe.
– È una disgrazia!, falava meu avô.
Humilhados em sua própria terra, sujeitos a todos os tipos de atrocidades impostas pelos dominadores, ou eles lutavam ou…
– Ou morriam, vô?, perguntei.
– As pessoas sofriam muito, respondeu.
Por isso, sem alternativa, preferiam lutar e lutar.
– A vida é uma benção, um dom, concluía meu avô.
O vô Carlito acreditava piamente que os homens se envergonhavam de toda aquela tragédia.
E que eu e os da minha geração não viveríamos atrocidades semelhantes.
– Impossível a Humanidade não ter aprendido a triste lição.
Meados dos anos 50, como eu disse.
Tudo levava a crer que o novo tempo seria pautado pela fraternidade e a esperança de dias melhores.
Para todas as nações.
– Somos todos irmãos.
Já aposentado como chapeleiro, o vô Carlito, da janela da casa humilde, acompanhava atento o tudo e o nada da existência humana. A vida em movimento, cigarro Fulgor no canto da boca e o copo de vinho ao alcance da mão. Fala mansa a lembrar uma ou outra história dos pais napolitanos, a coragem dos scugnizzi na libertação de Nápoles dos comandos inimigos e a embalar o neto caçula com os versos cantados de Luar do Sertão.
– A vida, meu neto, é uma benção, um dom… Para ser apreciada e, principalmente, vivida. Importante ´r fazer por merecê-la.
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Leila Kiyomura
21, agosto, 2025Que bonito legado…você teve a quem puxar. Ainda bem que ele deixou suas histórias para um neto escritor…