Essa história cabeluda, do uso indevido dos cartőes corporativos por funcionários –graduados ou năo – do Governo Federal, me fez lembrar outra, que nos divertiu a valer – o pessoal daquele boteco que năo mais existe entre a rua Bom Pastor e a rua Grenfeeld, onde o Sacoman, mais do que nunca, continua torcendo o rabo. Agora, registre-se, por obra e graça da futura estaçăo Ipiranga do Metrô.
É inesquecível também porque foi uma das raras vezes em que o mestre dos mestres, Nasci, năo pôde prever e, de um jeito até romântico, arcou com os prejuízos.
Era um fim de tarde desses, entre o chove e năo-chove, entre o sim e o năo. Uma quinta-feira de cinzas, como hoje, modorrenta em que até convite para reuniăo de condomínio surge como um bom programa.
O assunto, óbvio, era o rescaldo do carnaval. Quem ganhou e quem perdeu nos desfiles de escola de samba do Rio de Janeiro, qual a gostosa da vez, quem pulou a cerca, quem viajou, quem trabalhou, quem ficou mofando em casa, essas bobagens típicas desses dias vadios...
Detalhe: o Nasci năo aceitava discutir o carnaval de rua paulistano.
-- O Poetinha já falou e eu concordo com ele. Săo Paulo é o túmulo do samba.
O Mestre era implacável em suas verdades absolutas. E, em termos de escola de samba, só fazia uma concessăo ŕ Vai-Vai.
-- É a única escola que ainda temos. As demais săo um aglomerado de burguesotes que nada tem a ver com carnaval.
Nem todos concordavam com o Nasci. Mas, poucos ousavam discordar porque o homem era uma enciclopédia também nessa área. Quando ele começava a tergiversar sobre as origens do batuque paulista em Bom Jesus de Pirapora dava para se escrever uma tese acadęmica. Pior era quando năo deixava saída para o eventual interlocutor.
-- Vocę já ouviu falar em Geraldo Filme? Toniquinho? Sinval? Entăo, vá se informar e depois volte aqui para continuarmos a discussăo.
II.
Mas, nesse tarde, talvez temperados pela letargia de um dia sem graça ou porque alguns ainda regorgitavam uma ressaca daquelas, poucos falavam e rigorosamente ninguém ouvia.
O clima era esse até que o Dogival apareceu – sabia que conhecia esse nome de algum lugar e năo era só da novela das oito.
Dogival era um repórter policial. Nada brilhante, mas esforçado que só. Chegou afobado, veio falar com o Mestre porque fora designado para cobrir o lançamento de uma novela global, nos salőes do Jóckey Club de Săo Paulo.
O colunista de TV, Ismael Fernandes, estava hospitalizado – e afastado das suas funçőes. Saiu na comissăo de frente da Imperador do Ipiranga. Ficou seis horas esperando a vez de entrar na avenida Tiradentes – ŕquele tempo a Globo năo patrocinava os desfiles, por isso a bagunça era generalizada e os atrasos tăo comuns quanto as declaraçőes de vitória dos componentes de todas as agremiaçőes. A fantasia era feita de cetim dos mais vagabas, fininho, fininho. Resultado: o IF pegou uma friagem daquelas, com direito ŕ bronquite e dias de reclusăo.
Por isso, o Dogiva era o cara. Foi o primeiro que chegou ŕ redaçăo para passar as ocorręncias do feriadăo, o número de acidentes nas estradas, a ronda nos distritos – e năo teve conversa. O editor falou que tinha uma pauta que era “mamăo com açúcar”.
Agora o repórter estava diante do Nasci, com uma pergunta, que por si só, já era refrăo de um velho samba:
-- Com que roupa eu vou?
(Amanhă continua...)
[Texto publicado no livro "Meus Caros Amigos – Crônicas sobre jornalistas, boęmios e paixőes"] |