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A amiga que se foi

Há tempos que não a vejo pela aí. Nem sei se já partiu ou se ainda insiste em ficar mais uns dias. Não gostaria de perde-la de vista. Mas, verdade verdadeira, não tenho como prende-la a mim. Nossa última conversa começou assim:

— Estou pensando em dar o fora, ir para outro país. Dar outro rumo às nossas vidas.

Tenho ouvido essa frase com assustadora freqüência. Mas, nunca imaginei que ouviria da boca dessa jovem senhora, sempre tão otimista, de olhos cor de esmeralda. Ainda mais pelo tom de desalento com que me falou. Conheço a moça de outros carnavais. Tem experiência de vida, filhos crescidos, discernimento na arte de se relacionar com as pessoas e uma relativa estabilidade profissional. Apesar de um ou outro percalço, entende-se uma sonhadora. Não sei o porquê justo agora não vê a menor chance de ser feliz por aqui. Ou sei?

— Não é uma questão de dinheiro, não. Ao contrário. Este é o País das oportunidades. Mas, há algo de errado com a alma do brasileiro. Não quero ser cética. Não gosto de generalizar. Mas, não consigo ver solução para o caos em que vivemos, e vai além do que temos visto nos aeroportos.

II.

Perdemos a vergonha, pergunto.

— Vergonha na cara, eis um ingrediente que está em falta no mercado. Macunaíma, o herói sem caráter, lembra? Aliás, se olharmos ao redor, vemos que existem duas ou três gerações perdidas, aviltadas ou pela miséria ou pela abastança…

Entendo a indignação da amiga. Acontecimentos recentes demonstram um País em cacos. Meninos ricos – e imbecilizados – surram uma trabalhadora pelo prazer de humilhar quem não é do mesmo nível sócio-econômico. Meninos pobres matam a sangue frio num semáforo em São Paulo. Degenerados pelo crime. São apenas dois momentos da guerra diária que enfrentamos nas ruas, nas esquinas. Lembrar a hecatombe de maio do ano passado com os ataques do PCC em São Paulo ou a guerra declarada ao tráfico no Morro do Alemão no Rio de Janeiro é emblemático – e tristemente definitivo – da tragédia que hoje vivemos no País.

Recentemente, o locutor esportivo Luciano do Valle foi assaltado num movimentado cruzamento do bairro de Moema, em São Paulo. Ficou sob a mira de um revólver nas mãos de meninos de rua. Recuperou seus pertences depois – celular, carteira, relógio — , mas perdeu a vontade de deixar sua casa em Porto de Galinha, litoral de Pernambuco, para novos desafios profissionais e pessoais.

— Quantos ‘lucianos’ existem por aí, sem ter um porto seguro. Mas, não é apenas isso, meu caro.

Para ela, a violência é uma das pontas do iceberg da geleira moral que este barco chamado Brasil atravessa, sujeito a todas as intempéries e catástrofes. Acha mesmo que é conseqüência das mazelas que por aqui se sucederam, ao longo dos anos, sem que ninguém tomasse providências cabíveis – quer seja em âmbito do Governo, das instituições, da mídia que é conivente. Quer seja, junto à população.

— Aliás, sempre digo isso, ainda vivemos a síndrome do Caramuru. Lembra aquela história do colonizador que ameaçou incendiar as águas dos rios, ateando fogo a uma cuia com álcool – e os índios assustados entregaram o ouro, as mulheres e tudo mais aos portugueses. É certo que ganharam pedaços de vidros, tecos de espelhos, aguardente e toda uma tranqueirada sem serventia. E ficaram alegres e entorpecidos.

III.

Ao que parece, continuamos assim ainda hoje. Desde aquelas priscas eras, somos suscetíveis à chantagem e à corrupção.

— Veja o absurdo. Peça para qualquer contador lhe dizer. Você trabalha de cinco a sete meses do ano só para pagar taxas e impostos. E o que vemos nos noticiários? Vemos o destino que dão ao nosso dinheiro. Olhe o tanto de escândalos envolvendo o dinheiro público em todas as instâncias institucionais. É mesmo para descrer de tudo, né?

Não sei como atenuar o desabafo da amiga. Lembro que o jornalista Mino Carta, em diversas ocasiões, escreveu que não vê soluções para tais problemas a curto prazo. Ver este País minimamente equilibrado em termos de justiça social, talvez só seus netos. Ou mais realisticamente os netos dos seus netos. Pior: outras vozes sensatas embicam para o mesmo período. Desde que déssemos, os da nossa geração, um rumo adequado às ações a partir de agora.

— Mas, não é o que vemos. Cada vez mais, percebo que se instala em nossa gente uma certa cumplicidade oportunista com o errado, o falso, o transgressor. Não damos um passo em prol do que se entende por civilização. Tudo vira negociata. Tudo precisa ter um ganho pessoal. Caso contrário, não vira…

IV.

Reconheço que até em nossas novelas os canalhas são os tipos mais populares. Se forem simpáticos, com boa estampa, não há como torcer contra. Há sempre a desculpa que coisas piores, muito piores, são feitas em Brasília e nas esferas dos poderosos.

Ai, ai, ai. Não quero deixar me levar pela argumentação da moça. Mas, confesso, estou por um triz. Não vou mentir. Há algum tempo penso nessa possibilidade. Mas, ainda não havia me dado conta do tamanho da minha tristeza.

Mas, para onde você vai, pergunto.

— Não sei. Mas por aqui não dá para ficar. Também poucos sentirão minha falta. Preferem outras companhias, mais apropriadas ao momento. A Indiferença, por exemplo. Ou mesmo as purpurinas da Dona Fantasia, presente em todos os desfiles e paradas…

Há os que ainda acreditam, insisto. Não se vá assim. Precisamos de você, amiga Esperança.

— Nada posso fazer. Vocês estão me confundindo com as doces mentiras da Ilusão. Somos parentes, até nos parecemos. Mas, não sou de enganar ninguém…

Se a amiga Esperança se for, tão cedo não volta…