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Bia e a Tropicália

Bia quis me provocar.

Chegou e disse, sem sequer me dar bom dia.

— Você não acha que o axé é a Tropicália dos anos 90?

Saiu sorrindo, debochada. Sem ouvir o que eu tinha a lhe dizer.

Ela sabe da minha paixão pela MPB do século passado – quem são meus ícones: Caetano, Gil, Benjor, Chico, Paulinho, Milton, Erasmo e Roberto (mais Erasmo que o Rei, diga-se), Raul, Djavan, João Bosco, Elis, Ivan Lins. Belo time, hein…

Deve haver outros, mas são menos cotados…

Sabe também do meu horror ao que se fez em termos de música pra tocar no rádio e na TV dos 90 para cá…

Entendi a provocação com um raro bom-humor…

Mas, me pus a pensar.

A Bia não está de toda errada, não…

II.

Não sou louco de dizer que um é a extensão do outro que, por sinal, neste ano completa 40 anos de existência. Óbvio que também não há nada em comum em termos de valores conceituais, momento político e a anárquica fusão de ritmos e estilos, além da sofisticação de um grupo de músicos, compositores, poetas, artistas plásticos que pensaram e fizeram o movimento. Inclua-se Gil, Caetano, os maestros Júlio Medaglia e Rogério Duprat, Hélio Oiticica, Benjor, Nara Leão, Tomzé, os irmãos Campos, entre outros.

Épocas diferentes. Propostas distintas – se é que o axé tem algum outro propósito senão sacudir o esqueleto e faturar alguns muitos dindins dos filhos da incauta classe média paulistana. Essa mesma que se arrepia só de ouvir falar que Lula – um ex-trabalhador, iletrado – é nosso presidente.

Detesto genelarizar, mas enfim…

Creio que vocês entendem o que quero dizer.

III.

No entanto, vejam: o axé como tantas outras importantes – queiramos ou não – manifestações musicais brasileiras só existiram em função da histórica pedrada que a Tropicália deu no rígido mosaico de convenções que caracterizava a música popular nativa até o fim dos anos 60.

Estigmatizava-se o artista dentro de uma corrente – e pronto: era obrigado a seguir certas normas. Quem fazia música de protesto tinha de fazer cara de sério, violão em punho, de pé – porque banquinho e violão era coisa de bossanovista convicto – e continuar protestando vida afora. Macho cantador cantava de pé…

Cantor romântico tinha que obrigatoriamente ter um vozeirão e apresentar-se de terno e gravata, quando não smoking.

Quem era da turma da MPB podia participar dos festivais. Quem não era, sem chance e tome vaia.

A guitarra elétrica era uma invenção demoníaca de povos alienígenas. Só mesmo os suburbanos da Jovem Guarda a cantar para uma burguesia medíocre e alienada.

Verdade verdadeira.

IV.

Não acreditam?

Ouvi da própria Elis Regina, quando a entrevistei nos confins dos anos 70, que músicos, músicos mesmo, eram os rapazes do Zimbo Trio que a acompanhavam no programa O Fino da Bossa. Quem tocava rock conhecia, segundo a própria, três acordes “e olhe lá”.

Não acreditam em mim?

Pois foi a própria Elis que liderou uma passeata pelas ruas de São Paulo contra a invasão das guitarras elétricas. Caetano e Gil assistiram a tudo da sacada do prédio onde moravam, na avenida São Luiz, centro de São Paulo.

Está nos livros – só conferir.

São apenas dois exemplos. Elis não era a única. A mais corajosa, certamente.

V.

É célebre o impacto, as vaias, a surpresa que causaram Gil e Caetano no Festival de 67. Os baianos subiram ao palco com uma nova proposta musical, estética, comportamental. Muros, paredes, teias do conservadorismo vieram abaixo.

Caetano cantou “Alegria Alegria”, acompanhado de um grupo de iê-iê-iê chamado Beat Boys. Para completar, os caras eram argentinos e um deles – o organista – tinha a fisionomia de Jesus Cristo. Versos inteiros formavam um móbile de imagens e sensações.

“Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou. Por que não?
Por que não?”

Roberto Carlos disse que era a música que gostaria de ter feito. Era a primeira vez que o Rei participava de um festival. Foi vaiado ao interpretar uma canção triste, de Luiz Carlos Paraná. Um quase samba, “Maria, Carnaval e Cinzas”.

VI.

Gil foi além.

Fez-se acompanhar pelos meninos dos Mutantes (Sérgio, Arnaldo e Rita), violão e grande orquestra na épica “Domingo no Parque”. O arranjo foi do maestro Rogério Duprat. Misturou berimbau, guitarra, baixo eletrônico e violinos. Entre o rock, o baião e a ópera de enredo trágico. Cena do cotidiano de Salvador. O triângulo amoroso entre o rei da brincadeira (José), o rei da confusão (João) e Juliana.

“Foi no parque que ele avistou Juliana
Foi que ele viu
Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana, seu sonho, urna ilusão
Juliana e o amigo João
O espinho da rosa feriu Zé
E o sorvete gelou seu coração…”

VII.

Gil e Caetano não venceram o festival.

Ganharam Edu Lobo e Capinan, autoresd de Ponteio. Gil ficou em segundo, Chico com Roda Viva em terceiro. Caetano em quarto.

Houve vaias, aplausos. Polêmicas e muitas críticas.

Só um detalhe, Bia:

Desde então, a música popular brasileira nunca mais foi a mesma…

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26/04/2007
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