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Não sei se sei (Íntegra)

Amiga:

Não sei se sei escrever um texto sobre o tema que você me propôs. A história de um homem e uma mulher que se encontram num determinado momento, sentem-se atraídos um pelo outro. Apesar das diferenças de idade e de expectativas, admitem a possibilidade de ambos viverem um sentimento único e recíproco. Mesmo assim – ou talvez por isso mesmo – resolvem ignorar o envolvimento e fazer o que a sociedade espera deles, inclusive eles próprios se convencem disso e, assim, seguem rumos diferentes.

Só que, vida afora, um não esquece o outro. O outro não esquece o um.

Rolam as pedras do tempo, surge a internet e o casal retoma o contato.

Não há qualquer chance de partilharem juntos o mesmo caminho. Vivem com as respectivas famílias – e a distância é enorme. Ele num estado cosmopolita, ela muito além do perder de vista.

Um absurdo. Mas, os dois sabem que o melhor momento do dia é quando sentam à frente da tela do computador e buscam notícias daquele amor de ontem. Sem presente, sem futuro. Mágico no enfileirar de palavras, promessas e desejos. Mesmo que os dois – isto mesmo, os dois – saibam que jamais serão plenamente vividos.

O que faz um senhor quase setentão e uma jovem senhora se apegarem a esse ‘brincar de viver’ que, na prática, é uma baita ilusão do que poderia ser e não foi, não é e nem será?

II.

Amiga:

Se entendi bem, foi que dissertasse sobre isso o que me pediu  naquela tarde de junho. Como vê, resisti e ainda resisto a escrever sobre… Repito, não sei se sei. Aliás, de resto, sei que ninguém sabe. Nem esotéricos, nem psicanalistas, nem os sábios do deserto. Porque o amor – e os relacionamentos – tem lá suas peculiaridades. Um punhado de luz que faz verter o melhor da vida da gente e outro tanto de lambanças que dói no corpo e rói a alma.

Olha, para ajudar a explicar o que penso (mas, não tenho qualquer certeza), vou tomar como referência três filmes. Não ganharam Oscar, não lotaram casas. Não mereceram críticas como obras transcendentais. No entanto, nunca saíram da minha mente como toques interessantes para bem entender as surpresas da vida.

Não sei o nome de ninguém. Diretores, atores etc etc. Sei apenas que se chamam:

· O Marido da Cabeleireira
· O Perfume de Lucyenne
· Puerto Escondido.

Os dois primeiros são franceses. O terceiro, italiano – com um ator grandalhão e engraçado que fez também Mediterrâneo e Concorrência Desleal.

Aliás, se alguém souber a ficha técnica dessas produções fique à vontade para postar nos comentários. Importante: só a ficha técnica, ok? Porque amanhã eu escrevo sobre o enredo dos filmes e o que nos ensinam.

III.

O Marido da Cabeleireira é um drama. Conta a peculiar história do homem que sonhava em se casar com uma profissional da tesoura, digamos assim. Óbvio que havia motivo. Quando criança, a mãe o levou num salão feminino e a senhora que o atendeu – digna figura felliniana – deixou entreabertos alguns botões da parte superior do avental, o que projetou fartas imagens nunca mais esquecidas pelo protagonista. As flagrâncias, o roçar dos seios no seu ombro… Momentos inelutáveis, enfim.

Homem feito, cinquentão de cabelos retintos, encontra finalmente a mulher dos sonhos. Uma cabeleireira, de formas insinuantes e olhar triste. Casam-se numa cerimônia simples e vivem em perfeita harmonia. Tão perfeita que um dia, após amarem-se lindamente, ela resolve tomar uma atitude drástica que vai separá-los para sempre.

(*) No fim do texto de amanhã, eu digo qual é. Se alguém quiser assistir ao filme, melhor não ler a Nota do Autor.

IV.

O Perfume de Lucyenne é menos contundente. Mas, igualmente emblemático de como nós – verdadeiros estraga-prazeres do que a vida nos dá de mão beijada – teimamos em não entender o caminho da tal felicidade.

A bela e remediada Lu – se me permitem a intimidade – quer o mundo e um pouco mais. Encasquetou com a ideia de ser atriz de cinema. Um dia encontra um homem que lhe vira a cabeça. É um bonitão. Sonhador e aventureiro. Divertido. Vive o presente de forma intensa. Não pensa no futuro. Sequer sabe aonde vai estar amanhã.

Encontram-se casualmente num hotel e ele lhe diz que não consegue fazer planos. Apenas vive. E como? Ora, amparado por uma consistente herança de família. Hoje, está aqui, amanhã ali. E assim segue sem destino.

Apaixonam-se e caem no mundo. Mesmo nos momentos mais felizes, Lu tem uma pontinha de tristeza no olhar. O sonho – ou a bobagem – de ser atriz que não realizou.

Preciso dizer que o dinheiro acaba? Mais dia, menos dia, iria acontecer. Lá se vai todo o encanto. Tolinho, o sonhador aventureiro diz que não faz a menor diferença. Resta-lhe o suficiente para pagar a passagem de ambos rumo aos Estado Unidos. Hollywood, precisamente, onde ela tentará a carreira com que tanto sonha. Eles se amam – e é só o que interessa.

Pois sim.

— Como vamos nos sustentar? – ela pergunta.

— Trabalho até de entregador de pizza. Quero vê-la feliz. Só assim serei feliz também – diz o incauto rapaz.

Amam-se perdida e loucamente naquela noite.

Na manhã seguinte, porém, cadê Lucyenne?

Alguém aí sabe da moça?

(*) Vejam também amanhã em Nota do Autor, se quiser saber o que a moça fez.

V.

Puerto Escondido mistura comédia e aventura. Trata-se da história de um bem-sucedido gerente de banco na Itália. Ele preza bens materiais como impecáveis ternos Armani, gravatas de seda, o relógio Rolex, o Golf do ano e os cartões de crédito. Ah! Essas maravilhas que tudo nos permitem. Ou seja, curte todos os valores de uma sociedade consumista. Inclusive, deixa para um plano secundário o envolvimento com uma bela donna.

Tudo caminha bem até que um dia qualquer, no banheiro de um restaurante chique, ele é testemunha do assassinato de um comissário de polícia por uma organização criminosa – ou vice-versa. Arma-se então uma tremenda confusão. Há diversos interesses em jogo. Por isso, ele se vê forçado a fugir do País às pressas, pois corre o risco de também ser eliminado. Assim, ele é despachado – sem direito a explicações – para uma ilha nos arredores do México, a tal Puerto Escondido.

Na cena seguinte, vemos nosso herói dentro de um daqueles ônibus antigos, chamados ‘jardineiras’, lotado de nativos, bagagens fuleiras, caixas, galinhas, porcos, entre outras bugigangas. Sem saber o motivo que o levou ao exílio, o moço precisa recomeçar a viver num lugarejo primitivo e, para ele, inóspito. O Rolex vai embora na primeira negociação para conseguir alguns trocos na moeda local. Seus cartões de crédito foram desativados – é hora de se defrontar com uma nova realidade.

(*) Se o mocinho vai se dar bem, assista ao filme ou leia na Nota do Autor amahã., quando apresento as minhas conclusões sobre…

VI.

Amiga,

Citei essas produções para melhor ilustrar nossa conversa. Há aí três lições de vida que, muitas vezes, preferimos não assimilar.

Em O Marido da Cabeleireira, a própria resolve por um fim àquele envolvimento  por um motivo simples. Aquele foi um instante único e pleno. Mágico entre colônias e lavandas. Não se repetiria. Não mais com aquela intensidade e luz.

É até difícil escrever – e entender. Não há encantamento amoroso que resista aos altos e baixos do dia-a-dia. É inevitável.

O olhar triste da moça vinha daí. Não gostaria de ver, outra vez e gradativamente, o amor se desvanecer.

Nada, nada. É a mesma temática de O Perfume de Lucyenne. O imprevisível príncipe transformou-se num tedioso sapão. Tem cabimento? Ela a enfrentar o próprio sonho em Hollywood e o lindo, entregador de pizza. Cadê o tom de sedução que sempre procuramos no ser amado? E depois se ela própria fosse uma canastrona. O que fariam? Levariam uma vida entre a farinha, a mussarela e o forno à lenha.

Não pensou duas vezes. Deu área…

Puerto Escondido, por sua vez, mostra que sempre e sempre, sejam quais forem as circunstâncias, o homem tem essa capacidade de reinventar a vida – e isso me parece muito bom. Não existe uma única forma de ser feliz.

Felizmente , eu diria.

VII.

Isto posto, tentarei responder a pergunta que, lá no começo, encerra a parte um.

Assim:

O encontro virtual diário, parece-me, nada mais é do que um Puerto Escondido e bem mais seguro. Os dois tiveram – ou foram forçados a ter — uma praticidade de fazer inveja a Lucyenne. E, por fim, não correm quaisquer riscos de quebrarem o encanto e a cara. Têm sempre à mão um ‘amor eterno’ que foi sem nunca ter sido. Basta dar um clique e ‘viajar’ telinha adentro.

Como dizia um nobre deputado, está bom para os dois. Então, divirtam-se!

VIII.

De resto, cara amiga, só quero dar mais um pitaco. Nós, pobres e limitados humanóides, vivemos uma grande – vastíssima – contradição. Ao mesmo tempo, queremos viver um grande amor, com riscos e sobressaltos inerentes ao tamanho da encrenca. Mas, não abrimos a guarda para algo que pode nos tirar da adorável rotina de uma vida comum. Dessas bem pacatas mesmo, como nos cobram os amigos e as convenções.

Enfim, é isso…

IX.

* Nota do Autor

Aviso importante.

Pare por aqui se não quiser saber o fim dos três filmes.

01. O Marido da Cabeleireira – A mulher começa a cortar o cabelo do marido por falta de clientes que ousassem enfrentar a manhã de chuva torrencial. Os perfumes e as carícias logo se transformam num ato de amor intenso, envolto a lavandas e perfumes. Um ritual mágico. De repente, a mulher sai em plena chuva e se atira na correnteza para perplexidade dos espectadores. Ela preferiu dar fim a vida a enfrentar novamente o fim gradativo de um grande amor.

02. O Perfume de Lucyenne – A bela Lucyenne achou por bem aceitar o assédio de um milionário gosmento que a perseguiu durante todo o filme. Fugiu com ele naquela mesma manhã e deixou o bonitão sem nada entender. Acabou o encanto – e o dinheiro.

03. Puerto Escondido – Aos poucos, o italiano vai se adaptando à vida naquela praia lindíssima. Passa a valorizar as coisas simples da vida – a liberdade de ser o que se é, as amizades sem interesse, o por do sol. Quando, por fim, se desfaz o engano, ele prefere continuar por lá.

Eu avisei. Só chegou até aqui quem quis. De qualquer forma, vale a pena assistir aos três filmes e viver um grande e definitivo amor. No mínimo, no mínimo, queremos alguém que escute e acredite em nossas prosas. E que esteja ao nosso lado, mesmo a milhares de quilômetros de distância. Não é assim?