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O tuaregue

Há noites que são assim. Por mais cansado que esteja, por maiores que sejam os desafios da manhã seguinte, por tudo e por nada, você acorda e não dorme mais. Fica como ontem fiquei. A zapear desinteressado os mil e um canais da TV a cabo, a andar pelo apartamento às escuras, a achatar o nariz no vidro da janela que mostra uma cidade silenciosa, de luzes em tons de sépia, como se fosse uma foto antiga, onde o tempo finge que parou. Penso que melhor seria dizer: há madrugadas que são assim. Infindas. Incorporo este silêncio, esta paz — a tristeza que vai em mim. Queiramos ou não, é um momento de paz. Não é aquela que tanto procuramos. Mas, é uma paz. Enfim… Cá estou remexer no velho baú da memória e dos espantos, a ouvir o arrastar da corrente de fantasmas – uns mais, outros menos importantes em minha vida. Curioso como aquele quadro na parede ganha vida neste exato momento. Mostra uma caravana a cortar o deserto. O Saara, seria?. Homens de turbantes, túnicas, espadas. Montam camelos, outros caminham. De onde vêm, para onde vão. Seus passos não deixam marcas. Dissolvem-se na areia e o tropel logo faz surgir uma nuvem ameaçadora e sombria. Uma pergunta me assalta. O que me fez comprar essa pintura num dia incerto do passado? O que ela representa, além da velha sina da humanidade, a seguir do nada para lugar nenhum. Acho que nunca pensei nisso antes. Não é agora, quase três da manhã, que vou pensar. Não importa. Escrevo apenas para postar amanhã ou outro dia qualquer. É provável que a vida desses tuaregues só passe a fazer sentido a partir do desafio de atravessar o deserto, com seus mistérios e perigos e oásis. Até que não é má idéia imaginar-me um tuaregue. Escrever dá sentido à vida. Entendo assim a cada nova manhã ao vencer a aridez da tela em branco. Mas, há algo de errado — em mim ou no quadro? Um certo desconforto. Acendo a luz, me aproximo e constato: os rostos desses homens são desprovidos de olhos, nariz, boca. Manchas que não revelam qualquer expressão, qualquer sentimento. Apenas o delírio de estar no meio da travessia. O pior de tudo é que um deles se parece tanto comigo… Será?

E essa manhã que não chega…